Fim / princípio

[Texto lido a 22/12/2020, durante a defesa de tese com o título Instruções de Leitura, um estudo sobre convenções gráficas de apresentação da palavra escrita — uma tese de doutoramento em Materialidades da Literatura, Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra]

Começo… pelo final. O que talvez não seja de estranhar, uma vez que este é o momento final de um longo percurso académico enquanto estudante. Foram 25 anos de estudo no total que me trouxeram até aqui. É costume incluir na escrita de uma conclusão os trabalhos que poderão, futuramente, ser feitos. Neste momento análogo, porém, gostaria de referir aquilo que a tese fez comigo. 

Quando terminamos uma tese de doutoramento estamos nas condições e na posição certas para começar uma tese de doutoramento. A tese é um objeto que testemunha esse amadurecimento e comprova a nossa autonomia enquanto investigadores e pensadores. Não se pense com isto que menosprezo o objeto que tenho à minha frente, que mereceu todo o meu cuidado, e no qual deposito orgulho; mas sim que valorizo igualmente o processo. Não estou certa se um doutoramento serve para produzir teses ou para produzir Doutores, mas inclino-me fortemente para a segunda hipótese. Um doutoramento é um ritual de passagem. Um ritual que deixa um rasto — se assim me posso referir a este volumoso conjunto de palavras — que testemunha aquilo que o trabalho da sua criação fez connosco, que fez comigo. 

Deixou-me, como seria de esperar, numa posição completamente diferente da posição de partida. Aguçou o meu sentido crítico, aumentou enormemente a minha capacidade de leitura e de investigação, deixou-me mais focada e mais centrada naquilo que é a minha visão particular das humanidades e do mundo. Sou, hoje, uma pessoa que escreveu uma tese de doutoramento, e portanto, uma pessoa que será capaz, no futuro, de escrever coisas a esse nível. Esta tese, ou a escrita dela, deixou-me capaz e predisposta para continuar a produzir investigação, pensamento e escrita, sobre estes temas, e não só. 

Mas hoje… não. Hoje vamos olhar em conjunto para esta tese e apontar-lhe as suas virtudes e defeitos, falar sobre a adequação da sua estrutura, a profundidade dos seus argumentos, as suas falhas e os seus pontos de força e de originalidade. É também esperado que, depois de ter escrito esta tese, eu mesma seja capaz de os apontar. E, não menos importante, de ouvir as críticas que se lhe façam de forma a poder reformulá-la e redireccioná-la. 

Sei que, quando entrei no mestrado, e iniciei este cruzamento da minha área de estudos inicial — o design de comunicação — com os estudos literários tinha a audácia dos principiantes. Foi este doutoramento que me ensinou a amparar essa audácia com o mecanismo académico da citação e da prova, e a abrir o pensamento para a comunidade. Pensar, sim, em liberdade, claro, usando a intuição individual, evidentemente. Mas com a desconfiança, muito produtiva, de que poucas coisas há que não derivem de algo que já alguém pensou. Tentei domesticar esse arrojo que era típico dos iniciantes, e fazê-lo apresentar provas daquilo que dizia. Naturalmente, essa insistência pode enfraquecer a potência inicial de quem nada teme – potência essa que, de todo modo, seria insustentável ao longo de mais de 300 páginas. 

Mesmo assim, procurei preservar os meus instintos afiados. Esses que me fazem arriscar o cruzamento de teorias, perseguir com tenácia um argumento importante, ir buscar referências inusitadas, ou fisgar um conceito que reluz com um brilho que só eu reconheço. Foi um exercício de equilibrismo, de risco, de me lançar sem amarras, navegando tanto por áreas familiares como desconhecidas. 

O que é que resultou desse processo? O que é, então, esta tese? Esta é uma tese sobre leitura, no sentido mais lato possível. Voltando ao ponto que estabeleci há pouco: é uma tese sobre leitura que permitiu formar uma leitora e uma escritora, capaz de redefinir posições de leitura. Uma leitura holística, global, que não exclui mas também não depende da interpretação. Esta tese é, na verdade, um instrumento para pensar sobre a leitura, partindo do ponto de vista do objeto material e gráfico que nos suscita, estimula ou acciona essa leitura. 

Pode dizer-se que é uma tese sobre a forma dos livros — mas sobretudo sobre a forma como os lemos. Em todos os momentos, ela pretende trazer à consciência que a leitura verbal é um processo contínuo de tentativa de descodificação visual. Nela, tentei fazer aproximar a leitura táctil e material, comum no design, mesmo que de forma por vezes inconsciente, com os estudos literários. Fi-lo convicta de que será também do interesse das Belas Artes poder contar com este ponto de vista teórico. Apoio-me neste cruzamento a priori como um dos seus pontos de originalidade. 

Partindo para uma leitura mais concreta do que efetivamente fiz nesta tese, devo dizer que talvez, na primeira parte, tenha exagerado nesse mecanismo exaustivo da prova. Lamento se, nessa parte, aborreci algum leitor, coisa que aliás foi minha preocupação ao longo da escrita. Eu, como investigadora, é que precisava de partir desse solo firme. Demonstrar foi a palavra de ordem. 

Comprovando que a tese me deixou de facto diferente, só nesta última releitura, que fiz para preparar esta defesa, pude finalmente encontrar uma melhor forma de nomear as duas divisões dessa primeira parte. Os algo secos subtítulos «Interior» e «Exterior» poderiam ser substituídos ou complementados por «Ler um livro sem o abrir» e «Abrir um livro sem o ler», de forma a preservar um pouco melhor esse grau de interesse e graça, no sentido de elegância, que cultivo na escrita e que procuro instilar no leitor. Estes subtítulos seguiriam aliás a lógica do título de uma apresentação num Colóquio realizado nesta Faculdade de Letras — demonstrando também a importância de apresentar e fazer confrontar com os nossos pares as ideias que vamos burilando neste trabalho individual mas não necessariamente solitário de criação de uma tese. 

Na segunda parte procurei recuperar o carácter indagativo e inquisidor que mais mais me caracteriza. O objeto era também ele mais sedutor, o que em muito me facilitou a tarefa. Pude observá-lo com deleite e tentar fazer passar ao leitor aquilo que há de extraordinário na escolha da sua forma e, consequentemente, na sua leitura.

Talvez só na terceira parte tenha conseguido um equilíbrio entre ambas as atitudes — e por aqui se vê como é uma pena que não se comece uma tese no ponto em que se a termina. Nesta parte residem também considerações bastante importantes sobre aquelas que me parecem ser as possíveis aplicações desta tese, das quais falarei adiante. 

Creio que, perto do final da escrita, encontrei o tom de que desde o início andava à procura, ainda que eu suspeite que a procura do nosso tom específico é uma procura constante, sempre inacabada. O que não deve ser motivo para que não se escreva ou não se fale: pelo contrário, pode ser o motivo pelo qual se escreve ou se fala. A procura do nosso tom é um fim em si mesma, um fim bastante prazeroso, diga-se. De resto, julgo que o meu tom particular — claro, coeso, focado, com espaço para algum humor subtil e provocação quanto baste — ficou notório o suficiente na introdução e conclusão, partes que, suponho, venham a superar as restantes no número de leitores.  

Sei que deixei muito por dizer ou por incluir. Até campos inteiros de conhecimento podem reclamar pela falta de atenção que tiveram. Perguntam-me: “E os estudos dos media? E a intermedialidade?”. Procurando não ceder à tentação de expandir, sempre e mais, para novas áreas, respondo: tentei sempre construir o edifício da tese partindo daqueles que são os meus alicerces: o design de comunicação e os estudos literários. O que sempre me interessou foi procurar o cruzamento entre um e outro. 

Essa foi a minha intenção. Outras intenções, mais específicas, foram as de dar visibilidade àquilo que se foi tornando invisível por ser visto tantas vezes. As tais convenções de leitura, fortalecidas e ao mesmo tempo obscurecidas pelo seu uso continuado durante séculos. Da mesma maneira, quis explicar o comum, demonstrando aquilo em que ele é extra-ordinário. Creio ter levado a bom porto estas intenções.

Por outro lado, ao longo da escrita da tese, fui sendo surpreendida por outras características que nela foram surgindo, em virtude, muito provavelmente, do corpus que escolhi para esta demonstração. Que, relembro sobretudo para a audiência que possa não o saber, foi Bartleby, de Herman Melville. Julguei poder analisá-lo na sua forma sem que ele reverberasse em mim, mas naturalmente, acabou por dar-se uma momentânea transferência da personalidade de Bartleby, que «preferia não o fazer», ou, na tradução brasileira que analiso, «acha melhor não».

Durante a escrita, em vários momentos, fui-me dando conta de que a negação da leitura estava presente em vários pontos da tese — algo a que dei as boas vindas e tratei de colocar em evidência nos objetos escolhidos para a abrir e encerrar. Na introdução, para começar, Bla Blablabla, um livro totalmente composto por bla’s, e na conclusão, para terminar, a obra «Dear Reader, Don’t read», de Ulises Carrión. Eu mesma pedi ao leitor que não lesse da maneira a que estava habituado, para que assim lhe pudesse dar a ver como é o objeto que está a ler quem, em grande parte, orienta a sua leitura. 

A questão “ler ou não ler” ficou sempre pendente desde o primeiro Estado da Arte em que apresentei o projeto de tese — o Estado da Arte sendo um evento semestral deste doutoramento, no qual vamos apresentando periodicamente o avanço da nossa tese. No final, uma colega perguntou-me: «Mas vais ler Bartleby?», uma pergunta que me deixou algo desconcertada e que ficou sempre a ecoar em mim durante os cinco anos de escrita da tese. Posso dizer que, de certa maneira, toda a tese é uma longa resposta a esse pergunta. Sim, é uma leitura de Bartleby, não da forma mais tradicional. Será, provavelmente, uma leitura da leitura de Bartleby

Esta história serve-me também para sublinhar a importância desta tese ser inscrita num conjunto de teses, não ser um esforço isolado. Este momento solene que vivenciamos hoje é um ponto singular em várias rectas que aqui se intersectam. Uma delas, a do meu percurso individual, e outra, a da continuidade da produção académica deste programa de doutoramento. Assim como esta tese me formou a mim enquanto investigadora, ela vem somar-se também ao conjunto de teses de doutoramento em Materialidades da Literatura, ajudando a definir o que é, afinal, uma tese em Materialidades da Literatura. 

Se me perguntam o que se pode fazer com esta tese, ou a partir dela, sublinho, como uma hipótese que me parece promissora, que ela é um instrumento fundamental para se compreender o programa do livro, entendido como a maneira como ele nos permite ler. Este é um passo essencial para poder transferi-lo para o universo digital em toda a sua potencialidade. Anima-me bastante a hipótese de que ela possa ser um fundamento conceptual importante para a criação e estabilização de convenções de leitura no livro eletrónico, sempre honrando a legibilidade do texto e a clareza de comunicação. 

Por mais que a minha paixão essencial sejam os livros em papel, como posso não ser seduzida pela ideia de um livro que pode ser distribuído para além de qualquer fronteira, de forma instantânea? Um livro hiperligado com todos os outros e responsivo, adaptando-se às circunstâncias individuais de cada leitor. Um livro atualizável, no qual o leitor pode também inscrever. Como não querer fazer parte deste momento único de construção de novos paradigmas de leitura? 

Johanna Drucker argumenta que o livro (analógico, dir-se-ia) não pode ser tomado como única referência quando nos propomos a definir o que é um livro digital. Eu concordo. Mas sem dúvida importa refletir sobre o que o livro nos permite, ou seja, sobre o acto de leitura. Importa, ao olhar para um livro, reconhecer, para além do seu texto verbal, e até mesmo para além da sua visualidade e da sua materialidade, as suas instruções de leitura

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