Tempo e espaço

É, muitas vezes, entre lavar a mão esquerda e a mão direita, que a vida me aparece. Ou melhor, que eu apareço nela. Nesses momentos sou capaz, com uma naturalidade cheia de espanto, de me constatar a mim própria. Descobrir por exemplo que nem sempre fui assim. E que nem sempre serei assim. Ainda não tenho a certeza se esta imutável inconstância me anima, ou me esgota. 

À minha volta observo os vestígios que deixa em mim o estar apegada à realidade. As migalhas sobre a toalha, o desalinho das cadeiras, o cheiro da fruta que amadurece demasiado. Coisas que arrogantemente me afirmam a insubordinância do tempo. Preciso de saber fazer parar o tempo, para ser capaz de ver este meu corpo envelhecer. Ordenar ao tempo que deixe de me apoquentar; com a fruta que amadurece, com as pessoas que passam, com a luz que se põe. 

Lembro-me que na minha infância o conseguia fazer com facilidade. Nessa altura também dominava o espaço. Estar aqui, tinha igual significado que estar ali, ou estar além, ou estar nenhures. Nenhures era onde eu mais gostava de me esconder. Ninguém me descobria ou me apanhava, nada irrompia do meu perfeito disfarce de nada, e eu baloiçava no lento vazio entre duas gotas de tinta branca, no tecto. O espaço não era finito nem infinito, era relativo a mim. Tinha a largura dos meus braços, e o comprimento do meu olhar. Era abarcável. Estendia-se, mas podia-se entender. 

Nessa altura, sim, o tempo e o espaço eram os dois grandes eixos da minha vida. Depois, fui adornando-os com insignificâncias, e deixei de conseguir ver o tempo por detrás da sucessão de afazeres, ou o espaço por debaixo das deslocações diárias. 

Preenchi o espaço com sítios que nunca vi, mas que alguém conta ter visto. Mapeei com rigor todos os lugares onde penso um dia ir, e no processo, esqueci-me do caminho para o vazio entre as duas gotas de branco. Temo nunca mais lá conseguir voltar; perdi o lugar. Tinha os braços ocupados a segurar os sítios onde nunca irei. 

Da mesma maneira, anexei ao tempo aquilo que hei-de fazer, e enchi com esses grandes monos o tempo inteiro, desde hoje até ao último dia. À medida que vou olhando para trás, e me apercebo das oportunidades que perdi, volto; e estendo sobre elas um pesado naperon de condescendência, pronto a ganhar o pó das coisas passadas que se não tem coragem de remexer. 

Pior ainda, preenchi o espaço e o tempo com pessoas. Digo pior ainda, porque são muito mais difíceis de arrumar. Guardei algumas afastadas no espaço, outras afastadas no tempo. Muito poucas se conseguiam equilibrar no ponto exacto de cruzamento entre o aqui e o agora. Demasiado amiúde, quando queria recuperar as perdidas no tempo, tropeçava nas que tinha deixado próximas no espaço. 

São definitivamente mais difíceis de arrumar, porque insistem em não parar quietas. Se eu, por minha vez, conseguir repousar nalgum espaço do tempo, contemplo com inevitável angústia esse errático afastar ou aproximar de quem me é querido.

Observo ainda uma incompreensível poeira que por vezes se instala, com uma impertinência clarividente, entre mim e as pessoas que me poderiam ser queridas. Poderiam ser, mas nem sempre o são, por vezes por causa do tempo, outras vezes por causa do espaço. É como se fosse uma inexplicável névoa, que se adensa à medida que o tempo passa, e me distorce a visão. Estou quase certa de que será ela o único responsável por esse bizarro fenómeno, o da transmutação do espaço em distância, e do tempo em saudade.

[Publicado na revista Mutante, nº 6, novembro 2010.]

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