«An object only meets the criteria for being called scissors if it has two cutting edges. They are called the effective parts of the tool. But before the two cutting edges can become the artefact ‘scissors’, they need a handle in order to link the two active parts to the human body. Only when the handle is attached is the object a pair of scissors. The interface creates the tool. […] The task of design is to attach the artefacts to the human body.»
Gui Bonsiepe: Interface, 1999
Partindo da leitura de Interface, de Gui Bonsiepe (1999), proponho a reflexão sobre três objetos distintos, mas unidos por várias relações: estruturais, utilitárias e simbólicas. O primeiro objecto é a tesoura comum, proposta como exemplo por Bonsiepe, para explicar o papel do designer como criador de interfaces. A outra é a tesoura apenas representada e simbólica, que no jogo de crianças é capaz de cortar papel simbólico mas também pode ser amassada por uma pedra simbólica. Por último um objecto que não é exactamente uma tesoura, mas com ela se assemelha em termos formais e ‘funcionais’: o ‘arranca-corações’ ficcionado por Boris Vian,1 um objecto metálico e reluzente que tem exactamente a função que denomina: a de arrancar corações.
Há na relação destes três artefactos com o corpo humano um crescendo paradoxal: ao mesmo tempo que fisicamente os objectos se parecem embrenhar pelo nosso corpo, sendo que a segunda tesoura se apropria dele para a representar, e o arranca-corações chega a invadi-lo, os artefactos vão na realidade afastando-se, sendo que para utilizarmos uma tesoura não prescindimos do contacto manual com esse objecto, no caso do jogo ‘tesoura, pedra, papel’ escusamos de tocar efectivamente o papel para saber que o cortamos, e o arranca-corações não chega nunca a manifestar-se no nosso corpo a não ser em termos de circuitos neurológicos dentro do nosso cérebro.
Na relação interna entre estes três objectos, apresentados por esta ordem, há uma clara e decrescente utilidade prática: a tesoura representada com os dedos já só corta papel dentro dos limites do jogo, e o arranca-corações, objecto literário, não está ao nosso alcance para o utilizarmos como quer que seja. Ao mesmo tempo, ao longo desta relação observamos um aumento da noção de autoria. No que diz respeito à tesoura comum, só muito raramente sabemos quem a desenhou; a tesoura representada é da autoria de quem quer que a represente fisicamente, e o arranca-corações é sem dúvida de Boris Vian, e não pode ser nomeado senão como o arranca-corações de Boris Vian.
A meu ver, passarmos em revista mais minuciosa a diferença entre estes três objectos pode ajudar-nos a traçar várias linhas conceptuais relativas a questões importantes no discurso do design.
O designer que cria a interface ‘argolas para manusear as lâminas’ necessita conhecimentos específicos e todo um conjunto de habilidades. Entre a tesoura comum e a representada existe essencialmente um alargamento do papel do designer a quem quer que seja que faça o gesto determinado. Ele passa a comunicar dessa forma que a sua mão ganhou a capacidade simbólica de cortar, como uma tesoura. Há uma mensagem (tesoura) e há um meio que o comunica (a mão) através de um símbolo (o gesto), e no acto de comunicar esta mensagem existe (discutivelmente, é claro, mas, como sugere Bonsiepe, sejamos abrangentes2) um acto de design. Também se pode notar, na passagem de um objecto para o outro, uma diferença de abordagem do designer; se no primeiro objecto ele desenha e projecta uma inovação que equipa a tesoura de modo a poder ser utilizada e denominada ‘tesoura’ com propriedade (remetendo para o design de equipamento), no segundo caso o designer parte do princípio de que a tesoura já foi inventada e comunica uma tesoura através dos seus gestos.
No segundo caso trata-se então de design de comunicação. Nesta abordagem, parece-me que o artefacto já está ligado ao corpo humano, ou pelo menos há aí uma relação mais consistente. Isto é aliás claramente enunciado por McLuhan, quando diz que «todos os media são extensões de alguma faculdade humana—psíquica ou física».3 No caso do design de comunicação, portanto, julgo que há uma relação pré-estabelecida com o corpo humano através dos seus sentidos, e que o papel do designer consiste mais propriamente em gerir essa ligação da forma mais eficaz. Se de ligações eléctricas se tratasse, ao designer caberia manter o caminho o mais livre de obstáculos possível, e conseguir um sempre-melhor fio condutor.
Continuando a seguir a linha imaginária que une estes três objectos, aponto para uma divisão importante entre a mão representativa e simbólica e o arranca-corações, que está relacionado com o já descrito aumento da noção de autoria: o traçado da linha imaginária entre design e arte. O arranca-corações é um objecto completamente fictício, criado exclusivamente por Boris Vian. É uma peça literária única, não obstante a reprodutibilidade inerente ao meio da literatura.
Por último, a utilidade do terceiro objecto está muito próxima do zero, sendo que a única utilidade que lhe resta reside no plano mental e de conhecimento, no qual se transforma numa ferramenta não para arrancar corações mas para partilhar e transmitir ideias: a partir de agora, sabendo que pelo menos eu e mais outra pessoa conhecemos o arranca-corações, posso usá-lo como metáfora ou ferramenta simbólica para me expressar perante essa outra pessoa. Mas não é possível atribuir qualquer outra utilidade a esta peça única, o que a relega para o plano da arte e não do design, se o facto de se tratar de um objecto literário não chegasse já para fazer essa distinção.
À luz desta reflexão, proponho uma definição do papel do designer, mantendo em mente estes três objectos; ao designer cabe portanto não só desenhar as duas argolas para que se possa pegar na tesoura (a interface), como desenhá-las de forma a comunicar a sua função. Deve saber comunicar o conceito ‘tesoura’ tanto dessa forma como de diversas outras, e tem ainda a hipótese de acrescentar ao objecto um carácter único e individual, personalizado. Tem a oportunidade de lhe acrescentar outro nível de sentido, e uma riqueza simbólica, hipótese esta abraçada com mais ou menos vigor consoante o próprio carácter do designer.
[Texto escrito em 2005 para a disciplina de Tecnologias do Design III do curso de Design de Comunicação na Faculdade de Belas Artes da Universidade de Lisboa]
Notas
- VIAN, Boris, O Arranca-Corações, Ed. Estampa, 1970 [ed. orig.: 1962].
- «Thesis 1: Design is a domain that can be manifest in any field of human knowledge and practice. […] The term ‘design’ does refer to a potential to which everyone has access and which is manifest in everyday life in the invention of new social practices». (BONSIEPE, Gui, Interface: an approach to design, Jan van Eyck Akademie, 1999)
- «All media are extensions of some human faculty—psychic or physical.» (McLUHAN, Marshall, The medium is the massage—an inventory of effects, Gingko Press, 2001 [ed. orig.: 1967]).