Não é por nenhuma das suas peças que invoco o nome de Samuel Beckett, mas sim por uma citação sua, muitas vezes repetida: «Try again. Fail again. Fail better.» Estou a repeti-la, mais esta vez, para descrever as minhas inúmeras tentativas de andar de bicicleta.
Não me lembro de ter andado de bicicleta quando era criança. Tenho, portanto, mais histórias acerca de não andar de bicicleta. Pertenço ao provavelmente minoritário grupo de turistas que visitaram Amsterdão sem andar de bicicleta. Foi a pé que percorri as ruas desta cidade, na minha primeira viagem a solo. Mais tarde fiz outras viagens sozinha: Londres, São Paulo… Mais cidades onde nunca pedalei.
A razão para não pedalar, julgo, era o medo de cair, de me magoar com a própria viatura, e um desconhecimento em relação ao prazer que pedalar pode dar. Andar a pé parecia uma alternativa mais adequada ao meu ritmo distraído pela cidade. Além do mais, tenho um enorme apreço pelos transportes públicos, que me permitem dar de caras com pessoas com as quais possivelmente não me cruzaria noutra situação. Mas até as relações humanas a bicicleta tem a capacidade de melhorar — voltarei ao tema já de seguida.
Entretanto, mesmo apesar de não ter crescido com ela, entendi por força da razão que a bicicleta era um transporte que me deveria agradar — é ecológico, relativamente lento na melhor acepção da palavra, e extremamente autónomo. Tudo qualidades que muito me dizem. Por isso, tentei.
Fiz uma primeira tentativa séria quando fui trabalhar para Coimbra, em 2007. Os transportes públicos deixavam muito a desejar, e pareceu-me que a escala da cidade o permitiria. Achei que o plano tinha tudo para funcionar e fiz o que alguém que não percebe nada do assunto faria: fui a uma loja de desporto num centro comercial e escolhi uma qualquer. Só tive a preocupação de escolher uma portuguesa — enfim, era um critério possível para quem não conhecia outros. Era uma bicicleta e pronto.
No dia seguinte, sentei-me em cima dela para ir para o trabalho. Só nesse momento pensei: “Eu sei andar de bicicleta? Será que alguém já me ensinou a andar de bicicleta?”. Como disse, em criança nunca tive uma, apesar dos meus irmãos terem tido cada um a sua. Os meus pais não se lembram de eu alguma vez ter pedido. Eu não me lembro de nenhum momento de aprendizagem. Mas suponho que isso tenha acontecido, pois consegui pegar nela e ir para o trabalho, não um dia, mas vários dias seguidos.
Entre incursos pelo passeio e partes de estrada, descobri que Coimbra tinha muito mais inclinação do que eu imaginava. Passei a chegar ao trabalho atrasada, cansada, e numa pilha de nervos. Insisti o suficiente para os meus colegas me levarem a sério, e como fiz anos por essa altura, ofereceram-me um capacete, um cadeado, luzes e uma bomba de ar. Tudo coisas que eu não imaginaria precisar e que foram extremamente úteis. Mas aquilo continuava a parecer-me uma batalha. Pedi a várias pessoas conselhos acerca de como usar as 3 x 7 = 21 mudanças que tinha disponíveis. Apesar de me proporcionarem inúmeros sustos com barulhos na corrente, nenhuma delas parecia adequada às não tão grandes subidas que precisava superar. Veio o Inverno mais rigoroso… e eu deixei os pneus esvaziarem na garagem. Mais tarde, deixei Coimbra e a bicicleta lá veio comigo, no meio dos caixotes.
Anos depois voltei a estudar, em Lisboa. A casa onde escolhi ficar era relativamente perto da Universidade — uns dois quilómetros praticamente planos. Tinha autocarro à porta ou podia caminhar, mas os dois processos me pareciam demasiado morosos para uma distância aparentemente tão curta. Voltei a lembrar-me da bicicleta. E do capacete, das luzes, do cadeado, da bomba de ar. Levei tudo a muito custo para Lisboa — ainda hoje não sei como desembarquei do autocarro com a bicicleta, uma mochila e um trólei, e fui até casa arrastando todas essas rodas sabe-se lá com quantas mãos.
Recomecei a pedalar com vontade. No primeiro dia, ao atravessar a passadeira de um cruzamento com ela na mão, em passo acelerado, acertei no pedal com o calcanhar — de sandálias, evidentemente. Doeu-me para caramba. Mesmo. Fora esse incidente doloroso, em que me senti traída por algo que era suposto ajudar-me, sempre que chegava a casa era um martírio para a pôr dentro do espaço de que dispunha, e as paredes da casa alugada começavam a ficar com marcas negras que apontavam para a minha culpa. Não sabia como mexer nela, tinha a sensação de que me podia magoar de mil maneiras diferentes e, claro, ainda não sabia usar as vinte e uma mudanças. Esta foi a segunda das minhas tentativas pessoais, e a segunda vez que desisti.
Depois dessas duas tentativas falhadas, uma em Coimbra e outra em Lisboa, aconteceu que me mudei para São Paulo. Estava a preparar-me mentalmente para que pudesse ser uma mudança, digamos assim, para sempre, por isso ofereci a bicicleta aos sobrinhos. E fui. São Paulo não era, na altura, amigável para bicicletas, e esqueci esse assunto.
Devo dizer que antes sequer da minha primeira tentativa, acompanhei de perto o pedalar de outras pessoas. Lembro-me particularmente de dois amigos próximos que andavam de bicicleta no dia a dia, muito antes de eu sonhar que viria a usar esse meio de transporte. Quanto a um, assustavam-me os seus comportamentos de risco, as histórias como «hoje quase que levei com uma porta», «hoje um taxista passou tão perto que senti o retrovisor no cotovelo». Quanto ao outro, pude observar a batalha interior e discussões exteriores por causa do quanto ele estava disposto a gastar num meio de transporte, que, à partida, ele tinha escolhido por ser mais barato. Encerrou-se uma conversa entre amigos com uma sonora gargalhada quando ele perguntou em voz alta: «Mas porque é que as pessoas acham estranho eu querer dar mil euros por uma Kona?». Lembro também de um dia estar em casa de outro amigo, que ficava muito perto da praia. Pensamos em ir à praia, havia ali duas bicicletas… mas eu eu teimei que não, nem pensar andar na estrada de bicicleta.
No final, foi mesmo o observar um rapaz a andar de bicicleta que me convenceu a voltar a tentar; que trouxe de novo a bicicleta para o território das possibilidades. Mas não era um rapaz qualquer. Era o Louis Garrel, no filme Os Sonhadores, e fê-lo da maneira mais banal possível — exatamente o que eu estava a precisar. A certa altura do filme o rapaz vai encontrar-se com uma rapariga para irem juntos ao cinema. Como é que ele vai? De bicicleta. A bicicleta não é o tema do filme, de todo: não lhe é dada a mínima atenção ou destaque. Simplesmente aparece no plano porque está a ser usada, como se de uma cadeira ou um copo se tratasse. Nas cenas finais, ele sai para a rua para se juntar à revolução. Como? De bicicleta, naturalmente. Naturalmente. Suavemente, fluidamente. Era isto! De todas as vezes que eu tinha tentado andar de bicicleta, era esta naturalidade que eu almejava. Essas cenas ficaram incrustadas na minha memória como se fizessem parte de mim desde pequena, como que substituindo passeios prazerosos em criança. Não sei se foram filmados em câmara lenta, o montar e desmontar da bicicleta na porta do cinema (aliás, duvido), mas na minha cabeça claramente são.
Tendo voltado de novo para Lisboa, para terminar o mestrado, na mesma casa a dois quilómetros da Universidade, decidi tentar outra vez. Informei-me, vi vídeos, falei com pessoas. Na verdade, a bicicleta estava já nos meus planos quando, ainda em São Paulo, preparava mentalmente o meu regresso. «Mas o que é que eu vou fazer em Portugal de novo?» «Vou andar de bicicleta». Não sei exatamente de onde surgiu essa ideia, mas o facto de decidir regressar a um país em crise, sem emprego à vista, e portanto precisar de um estilo de vida o mais económico possível terá tido o seu papel. De qualquer maneira, sou uma pessoa que precisa de planos.
Como a bicicleta tinha sido doada aos meus sobrinhos, comprei outra, em segunda mão, depois de longas pesquisas, experiências e pedidos de aconselhamento. Sem mudanças. Sim: zero mudanças (uma mudança imutável, vá: uma single speed). Uma bicicleta ligeiramente menor do que o costume, adequada à minha altura, muito fácil de manejar. Com um quadro totalmente aberto, que me permitia entrar e sair dela com a maior das facilidades. Houve até um dia em que ela caiu e eu consegui saltar dela para o passeio, ficando em pé, ilesa, a olhar para a bicicleta no chão, com a roda a girar. A melhor escolha de sempre. Se ia voltar a tentar, esta seria a minha melhor tentativa. Talvez falhasse de novo, mas falharia melhor.
Para demonstrar como esta foi uma excelente tentativa a todos os níveis, preciso de voltar a falar de rapazes. Um dia, depois de uma tarde de praia com um amigo muito querido, eu estava com a bicicleta na mão à minha frente e ele aproximou-se de mim mais do que eu esperava, mais do que um amigo o faria. Eu, com a atrapalhação, deixei cair a bicicleta, que lhe acertou com um pedal nas canelas. Juro que não foi de propósito. Juro! Mas confesso que quando, cheia de expectativa, o vi de olhos fechados a ganir para dentro, senti que talvez eu tivesse escapado de alguma coisa importante. Bicicleta amiga, uma que me protege nos momentos mais difíceis! Talvez naqueles segundos de olhos fechados ele tenha ouvido a bicicleta perguntar-lhe: «Tens a certeza?». Ou talvez tenha sentido simplesmente que o momento estava arruinado. Aguardei um pouco, mas mais nada aconteceu. A verdade é que a aproximação não foi tentada de novo, e pude prosseguir com a minha vida.
A minha vida, na verdade, prosseguiu no sentido de um beijo depois de um passeio de bicicleta. No processo de compra da bicicleta, além de incomodar vários vendedores particulares, cheguei a visitar algumas lojas — especializadas, desta vez; há que aprender com os erros. Numa delas, em particular, um dos donos pareceu-me ser uma excelente pessoa. A verdade é que, bem antes de eu perceber o que se passava ali, o facto de o conhecer renovou a minha esperança na humanidade, em geral; nos rapazes, em particular. Ali estava um excelente exemplar, pensei, e comentei com uma amiga que fui visitar logo depois de o conhecer. Um homem bom. Ainda havia por aí homens bons, e eu haveria de encontrar um que quisesse passar a sua vida comigo.
Nos dias, semanas e meses seguintes passei a gravitar, sem saber bem porquê, em torno daquela loja. O uso da bicicleta estava agora mais do que estabelecido, mas para isso ainda precisava de um cadeado, luzes, capacete. E uma campainha, um cantil, ou até talvez uma revista para oferecer à amiga que mais me aconselhou nesta última tentativa — última porque finalmente bem sucedida. E claro, a altura do selim tinha que ser afinada, assim como as pastilhas e cabos dos travões, e talvez os punhos pudessem ser substituídos. Tudo razões perfeitamente válidas para novas visitas, numa altura em que nem eu mesma percebia o que me levava ali. Comecei a desconfiar do que se passava dentro de mim quando um dia ele me pergunta: «Tens pressa? Ou posso atender este cliente primeiro?» e eu respondi «Claro, não te preocupes; eu posso esperar». Tinha pressa, muita pressa: tinha outras coisas combinadas para as quais já estava atrasada. Mas quando estava perto dele, o mundo enchia-se de tranquilidade e tudo parecia poder esperar. Quando me aproximava dele, nunca me queria afastar.
O resto… já o disse: um passeio de bicicleta na praia, o primeiro beijo. Ainda não ensinámos o nosso filho a andar de bicicleta, mas esse tempo está quase a chegar.