«Também eu, como tantas outras pessoas, passei parte do meu tempo de confinamento a alimentar um fermento. Aliás, primeiro alimentei a ideia de fazer um fermento, apenas com farinha e água. Estudei, ponderei, li procedimentos, pedi receitas. Depois, alimentei o dito fermento, com farinha e água — no início 20g, depois 50g; primeiro, a cada 24 horas, depois, a cada 12 horas. Levei-o a todo o lado na casa, à procura de um lugar quentinho, aconchegado, aconchegante. Disseram que ao sétimo dia estaria pronto; não estava, não desisti. Dei-lhe tempo. Continuei a alimentar de manhã e à noite, a dar-lhe carinho e quentinho, a observar-lhe o crescimento, sempre acanhado, inconstante. Ao décimo oitavo dia, quando pensamentos melancólicos sobre o fim (do fermento) já me invadiam o espírito, deu-se o milagre: duplicou de tamanho, estava pronto. Então pensei: vitória! Venceu a persistência, a dedicação, a paciência. Está pronto. Mas isso era apenas porque ainda não sabia o que vinha a seguir. Fazer um pão com massa mãe — com este fermento de bactérias selvagens que circulam no ar e simplesmente se agarram à farinha quando lhes damos condições para isso — exige uma grande disciplina. Ter um fermento pronto […] é apenas o primeiro passo; o primeiro de muitos.
Esta não foi a primeira vez que me aventurei a lidar com organismos vivos na cozinha. De há uns meses para cá faço o meu próprio iogurte, pelo que já percebi a importância da temperatura certa, da paciência, da tentativa-erro, da afinação, de tentar compreender o bicho e até de seguir o nosso instinto para escolher a melhor maneira de cuidar dele, ouvindo-o e ouvindo-nos, como faríamos com um filho.
Tendo o fermento pronto, agarramos nele, no entusiasmo, na farinha e na água e juntamos tudo numa taça. E esperamos. […]»
Publicado originalmente no projeto Alento, de Matilde Viegas e Mafalda Salgueiro.
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