Se um dia a morte me bater à porta, eu vou dizer: “Pois não?” e deixá-la entrar, como visita importante que não esperava receber sem um aviso, logo hoje, a casa nunca está pronta, desculpe a bagunça, pode entrar, enquanto, apressada, vou ajeitando as almofadas do sofá e passando as mãos pelo cabelo.
Se um dia a loucura me bater à porta, eu vou perguntar se tem a certeza que o endereço é este, não tem ninguém aqui com esse nome, não, e enquanto isso vou ajeitando o cabelo, porque uma coisa é ser apanhada de surpresa e depois tudo acabar, outra coisa é ser apanhada desprevenida e ter de continuar a vida depois; não ajeito as almofadas porque a loucura não liga para isso, vou sim preparar um chá enquanto ela sobe; “Sim, tem razão, é aqui, só quis ter a certeza de que era comigo mesmo, é cada um que nos aparece! Pode entrar”, havemos de nos entender, quem sabe seria uma linda conversa.
O problema, o problema mesmo, não é ter a casa bagunçada quando elas entram. O problema é se nessa hora estiver tudo no seu lugar, os pacotes todos por abrir, o plástico intocado e já amarelado pelo tempo, a mesa grande da sala impecavelmente limpa à espera das visitas, as velas exalando o mesmo cheiro fraco há anos sem nunca terem sido acesas, as almofadas sem rugas e por amassar, o sofá sem uma manchinha, por pequena que seja, de vinho do Porto.
Se a vida me bater à porta… Se a vida bater à porta eu nem uso o intercomunicador, carrego no botão que tem a chave desenhada três vezes e já deixo a porta de casa entreaberta enquanto ela sobe as escadas, e quando ela entrar eu saio da cozinha com um acepipe pronto, dois copos equilibrados na outra mão, enquanto ela procura um lugar para pousar o casaco pois a casa já está lotada de gente rindo e a festa ainda nem começou.